Este foi o inicio de um trabalho que adorei fazer sobre uma pessoa que também adoro...
As crianças até há bem pouco tempo não tinham direitos eram consideradas objectos, assumiam “a condição de serem não pessoas” (Marice, 1996, pp. 272-3)
Em meio século muitas coisas mudaram. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada a 20 de Novembro de 1989 e com carácter vinculativo veio estabelecer critérios e direitos que a pouco e pouco já vinham a ser adquiridos.
Ao longo dos últimos anos criaram-se imensas disciplinas que asseguram o bem-estar da criança, tendo em conta o seu desenvolvimento e os seus direitos. Quanto a isto, o fim dos anos 80, princípio dos anos 90 foram decisivos. Daí que entre uma pessoa que tenha nascido na década de 50 e uma nascida em pleno século XXI existam diferenças abismais.
X nasceu nos anos 50 numa aldeia beirã, onde as crianças começavam a trabalhar logo que tinham forças. Dizia o povo “quando já tinham corpo”, tempos de miséria em que mais dois braços representavam muita ajuda principalmente nas aldeias onde se trabalhava de sol a sol. Aplicava-se o provérbio “trabalho de menino é pouco mas quem o despreza é louco”. As crianças eram levadas desde cedo para o campo enquanto as mães trabalhavam.
Para além de se trabalhar para as próprias famílias, os mais pobres trabalhavam também para outros como “obreiros”. Este trabalho infantil não era pago, era “trocado” por outro trabalho por se considerar que as crianças não tinham força suficiente para desempenhar completamente a tarefa. Horas e horas de trabalho desvalorizado, horas de infância perdida por se considerar que as crianças tinham mesmo obrigação de trabalhar. Isso fazia parte do seu processo educativo.
Os irmãos mais velhos tomavam conta dos mais novos, isto não era trabalho, era obrigação.
Havia uma lei anterior ao fascismo que obrigava à escolaridade mínima de 3 anos. Mas não havia escolas suficientes nem professores. Ora havia professora ora não havia: custos da interioridade. Nas aldeias beirãs construíram-se escolas na aldeia sede de freguesia que serviam as várias aldeias de toda a freguesia. Mas não haviam transportes, as crianças deslocavam-se por caminhos de cabras, a pé, o que se traduzia em horas de caminho para chegar à escola e para regressar. As famílias não viam com bons olhos a ida dos filhos à escola porque um filho na escola significava menos dois braços para trabalhar. Só estas escolas (no interior) eram mistas porque só havia uma escola e um professor e na mesma sala reuniam-se alunos e alunas de todas a idades da 1ª à 4ª classe. Um trabalho extenuante para o professor que acabava por não ser muito eficaz porque era humanamente impossível dar quatro classes ao mesmo tempo. Era prática corrente entre os professores que eram originários das aldeias porem os alunos a trabalharem de graça nas suas propriedades. Dado que o professor era uma figura inatingível, respeitado como um Deus, as famílias dos alunos tinham que aceitar sem revolta. Mas isto levava a que muitas retirassem os filhos da escola, porque afinal se era para trabalhar no campo em vez de aprender a ler, era preferível trabalhar para a família.
No caso das raparigas a ida à escola era ainda pior, pois se considerava que as mulheres deviam ficar a tomar conta dos filhos e da casa. Havia um sentimento que ligava a escola à prostituição. Desconfiava-se das mulheres que sabiam ler. No fundo, o princípio era o de manter as pessoas na ignorância.
A única religião existente era a católica e todos eram baptizados ainda em bebés e tinham obrigação de ir à missa.
Toda a educação era baseada na repressão e no medo, reinava a “pedagogia da reguada”. Considerava-se que se não se batesse nas crianças elas não iam ser bem-educadas. Batia-se por tudo e por nada. X considera que era uma descarga de tensão para os adultos, que reprimiam as crianças para compensar a sua própria insatisfação e por acharem que educar era bater. As crianças tinham a noção que o dia a dia que as esperava era pancada, cansaço de trabalho e medo. Brincar era quase um crime porque era roubar tempo ao trabalho, como algo proibido.
O ensino não era estimulante, era desadequado da realidade. Que interessava a uma criança da beira saber as estações de caminhos-de-ferro de Angola quando a grande maioria nem tinha vista um comboio?
Nas aldeias as pessoas nasciam e morriam sem ir ao médico. Por isso havia tanta mortalidade infantil. As crianças nasciam em casas sem condições de higiene. As doenças infantis matavam, não havia vacinas nem acesso a medicamentos. A maioria tomava apenas três banhos na vida: no momento do nascimento, no dia do casamento e quando morria.
As roupas eram poucas, feitas em casa e tinham de ser usadas até ao fio, remendadas até não terem mais espaço para pôr remendos. As crianças mais pobres andavam descalças. Um par de sapatos tinha de durar pelo menos cinco anos, porque o esforço financeiro de arranjar uns novos era muito grande.
O pouco dinheiro que as pessoas conseguiam ao longo da vida era guardado para a velhice, para quando já não pudessem trabalhar porque não existiam reformas.
E pergunto a X: Depois de tudo isto…Consideras que a infância sem infância te prejudicou na adulta que és hoje?
Resposta de X: “Concerteza. A falta de infância sem infância gera adultos ou demasiado repressivos ou demasiado iguais aquilo que os pais foram com eles, ou demasiado permissivos por se lembrarem do que sofreram na infância com a repressão a que foram sujeitos. Adultos que não sabem viver, que não são capazes de procurar lazer sem sentimentos de culpa, ocupar o seu tempo livre, porque não aprenderam os jogos na devida altura, pouco instruídos também não se dedicam à leitura, enfim, adultos que facilmente caem em excessos como o álcool ou a droga ou mesmo o excesso de trabalho. Gente dura e pouco tolerante, porque é através da brincadeira, do espaço lúdico que criança absorve o mundo e constrói as suas relações com os outros, aprende a tolerância e o respeito. As gerações que viveram a infância antes do 25 de Abril só despertaram para os direitos das crianças com a infância dos próprios filhos. “